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Âncora 1

SEQUÊNCIA 04

DIREITOS HUMANOS: ENTRE A CONSTITUIÇÃO GARANTIDORA E AS VIOLAÇÕES SEM GARANTIA EFETIVA DOS DIREITOS HUMANOS

Nesta última sequência proposta, temos como objetivo a compreensão dos estudantes sobre a contraditória situação da sociedade e do Estado Brasileiro: com uma constituição extremamente progressista e avançada nas questões de defesa e garantia dos direitos humanos, participante de diversas convenções sobre questões temáticas dos direitos humanos inclusive na posição de liderança, o Brasil carrega traços pesados de uma herança ditatorial que mantém, na lei e no cotidiano, elementos que causam violações constantes e reiteradas dos direitos humanos em diferentes níveis e em diferentes situações.

Estas contradições se fazem presentes em discursos generalistas e carregados de senso comum com os quais convivemos diariamente, inclusive em sala de aula. Direitos e garantias são vistos, dentro de um contexto de senso comum, como privilégios e passíveis de serem defendidos para "os meus", enquanto que para "os outros", tais garantias e direitos passam a ser condicionados por determinados comportamentos, determinadas situações ou determinadas regiões.

Exemplo disso são as frases de efeito como "direitos humanos para humanos direitos", "se tá com dó de bandido, leva pra casa" ou a fadada "bandido bom é bandido morto", o que pode ser refletido a partir do momento em que algum familiar próximo de quem profere esta sentença comete um crime. Permanece este desejo de morte para o bandido?

 

Com os devidos cuidados para evitar generalizações, apenas propomos uma reflexão a partir de expressões que costumamos ouvir, porém, dentro de nossa proposta, sugeriremos uma sequência na qual o estudante poderá compreender o significado, a historicidade e a importância da defesa e da garantia dos direitos humanos em uma sociedade que já possui a previsão desta defesa e garantia em seu aparato legal porém, em seu cotidiano, esta garantia não é para todos.

Dessa forma, a fonte inicial para o trabalho com esta sequência é o texto constitucional, com destaque para os primeiros artigos que, textualmente, apontam para a obrigatoriedade da observância e garantia dos princípios dos direitos humanos:

TÍTULO I

DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

    Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
     I - a soberania;
     II - a cidadania;
     III - a dignidade da pessoa humana;
     IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
     V - o pluralismo político.


[...]

    Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
     I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
     II - garantir o desenvolvimento nacional;
    III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
   IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

    Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
     I - independência nacional;
     II - prevalência dos direitos humanos;
     III - autodeterminação dos povos;
     IV - não-intervenção;
     V - igualdade entre os Estados;
     VI - defesa da paz;
     VII - solução pacífica dos conflitos;
     VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;
     IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
     X - concessão de asilo político.

De forma explícita no artigo quarto e através de princípios no artigo primeiro, terceiro e em todo o longo artigo quinto, os direitos humanos são a base da República e da sociedade brasileira e os estudantes poderão, a partir da análise destes trechos, refletir sobre a realidade desta fundamentação.

Para tal reflexão, propomos, em seguida, o trabalho com os inquéritos policiais de Henrique Cintra Ferreira de Ornellas e de Abelardo de Araújo Moreira. Questionamentos ligados aos responsáveis pela morte e prisão destas pessoas e sua inimputabilidade, nos remeterão às considerações acerca da Lei da Anistia que garante a não culpabilidade de todo e qualquer agente do Terrorismo de Estado.

As considerações sobre a construção desta lei, dentro do contexto da abertura política e a partir da comparação entre as atas e publicações dos Congressos Nacionais pela Anistia e o texto da Lei da Anistia, possibilitam trabalhar com os estudantes alguns conceitos como: apropriação (visto que o governo se apropriou de uma luta popular), permanência (visto que uma lei de 1979 permanece impedindo a conclusão de uma longa e dolorosa justiça de transição) e seletividade (nem todos os crimes foram perdoados pelo Estado, conforme §2º do art. 1º).

Segundo o Movimento Matogrossense pela Anistia e Direitos Humanos

 

"a Anistia exigida pela nação brasileira é a anistia Ampla Geral e Irrestrita. Ampla - para todas as manifestações de oposição so regime; Geral - para todas as vítimas da repressão e Irrestrita - sem condicionamentos ou restriões.

A luta pela anistia , portanto, não cessará enquanto todos os que lutaram contra o regime de arbítrio não forem reintegrados à vida social e política do País e enquanto a Nação não puder se organizar, através de novo pacto social, onde todas as correntes de opinião possam se representar livremente."

Além deste manifesto, declarando de forma didática e clara o conceito e os objetivos da Anistia, o Congresso Nacional pela Anistia, de novembro de 1978, apresenta, em suas atas, uma série de documentos possíveis de serem trabalhados em sala: resumo das resoluções do congresso, regulamento interno, programação do congresso, relatório das entidades presentes, relatório geral do congresso, documentos direcionados à imprensa e diversas deliberações e moções de entidades específicas que participaram do congresso. É possível perceber, de forma simplificada, como os movimentos pela anistia pleiteavam o perdão de todos aqueles que haviam sido punidos por se oporem ao regime

A Lei da Anistia, outorgada por João Figueiredo em 1979, por sua vez, subverteu os movimentos e abriu possibilidades impensáveis para os militantes dos movimentos pela anistia: militantes dos movimentos revolucionários armados não foram anistiados enquanto que as bárbaras torturas realizadas por agentes do estado foram sentenciadas ao esquecimento! A análise do art. 1º permite compreender esta excrecência jurídica a qual nosso país foi condenado:

LEI No 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979.

Concede anistia e dá outras providências.

 

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

§3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.

Por fim, a compreensão das consequências deste processo poderão ser verificadas com a análise da sentença de 24 de novembro de 2010, da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil.

 

Nesta sentença o Estado Brasileiro foi condenado, em um tribunal internacional, por graves violações de direitos cometidas contra membros da guerrilha do Araguaia no contexto da repressão militar. A sentença demonstra como esta situação é contraditória e complexa. Segundo a Corte, além das violações diretas cometidas no caso em questão, a própria lei da anistia não cumpre com as obrigações internacionais de defesa dos direitos humanos o que inclui a garantia de justiça, reparação para as vítimas e responsabilização dos criminosos. A corte, portanto condenou o Brasil a cumprir:

1. Obrigação de investigar os fatos, julgar e, se for o caso, punir os responsáveis
253. A Comissão solicitou à Corte que ordene ao Estado realizar, por meio da jurisdição de direito comum, de uma investigação judicial completa, efetiva e imparcial dos desaparecimentos forçados do presente caso e da execução da senhora Petit da Silva, com base no devido processo legal, a fim de identificar os responsáveis intelectuais e materiais dessas violações e sancioná-los criminalmente. Para isso, o Estado deve levar em consideração que esses crimes são imprescritíveis e não podem ser objeto de anistias. Por esse motivo, o Brasil deve adotar todas as medidas que sejam necessárias para assegurar que a Lei de Anistia e as leis de sigilo não continuem a representar um obstáculo para a persecução penal contra graves violações de direitos humanos. Além disso, solicitou que se publiquem os resultados dessa investigação, para que a sociedade brasileira possa conhecer esse período de sua história.

254. Os representantes solicitaram ao Tribunal que ordene ao Brasil a investigação dos fatos, o julgamento e a punição de todos os responsáveis, em um prazo razoável, e que disponha que o Estado não pode utilizar disposições de direito interno, como prescrição, coisa julgada, irretroatividade da lei penal e ne bis in idem, nem qualquer excludente de responsabilidade similar, para eximir-se de seu dever. O Estado deve remover todos os obstáculos de facto e de iure, que mantenham a impunidade dos fatos, como aqueles relativos à Lei de Anistia. Adicionalmente, solicitaram à Corte que ordene ao Estado que: a) sejam julgados na justiça ordinária todos os processos que se refiram a graves violações de direitos humanos; b) os familiares das vítimas tenham pleno acesso e legitimação para atuar em todas as etapas processuais, em conformidade com as leis internas e a Convenção Americana, e c) os resultados das investigações sejam divulgados pública e amplamente, para que a sociedade brasileira os conheça (GOMES LUND, 2010, p. 94-95).

 

Esta condenação por uma corte internacional, que foi a causa para o início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, escancara os problemas ligados aos direitos humanos que têm origem com a lei da anistia. O Brasil participou efetivamente na construção de diferentes áreas dos direitos humanos, principalmente durante e após o período da Assembleia Nacional Constituinte.

 

Importante enfatizar em sala, também a política brasileira de reparação financeira às vítimas e aos familiares mantendo o silêncio quanto à responsabilização dos culpados, mesmo após os resultados da Comissão Nacional da Verdade. Há, inclusive, notícias mais recentes a respeito de indenizações pagas pelo Estado Brasileiro a Aberlardo de Araújo Moreira e à família de Henrique Cintra Ferreira de Ornellas. O Estado assumiu a responsabilidade pelas violações aos seus direitos humanos, porém, os agentes responsáveis pelas ordens e os agentes responsáveis pelas execuções destas ordens permanecem inimputáveis.

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