CONCEITOS DO ENSINO DE HISTÓRIA
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE OS CONCEITOS ENVOLVIDOS NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO EM SALA DE AULA
01. CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
O ponto de partida de todo o trabalho em sala de aula é a tentativa de perceber as formas de consciência histórica presentes na turma. Esta preocupação é importante, pois parte desta percepção o planejamento de formas de ensinar história que sejam alicerçadas nos significados históricos pré-existentes dos alunos, algo que quando não observado, contribui para que o ensino de história seja uma sequência de datas e fatos “insignificados”, os quais serão regurgitados e esquecidos após o teste escrito. Dessa forma, uma melhor conceituação da consciência histórica pode nos ajudar a desenvolver este trabalho.
Em seu trabalho, Ensino de História e Consciência Histórica¸ o professor Luis Fernando Cerri desenvolve uma longa análise, embasada em Agnes Heller e Jörn Rüsen, na qual explica que existem diferentes consciências históricas que explicam nossa existência, justificam nossas instituições e costumes e até mesmo determinam nossos pensamentos. Elas estão presentes em todos os seres humanos, em todos os lugares e tempos, sendo uma condição da existência humana e a base para a formação identitária: aquilo que define o “eu”, o “nós” e o “eles”.
É a consciência histórica que integra as dimensões do passado, presente e futuro. Ela forma, em última análise, a coesão social e fundamenta as instituições, desde as sociedades antigas e tradicionais até os modernos Estados-nação. Cerri argumenta que para explicar consciência histórica é preciso usar uma definição muito ampla de história, como tempo significado. Consciência histórica não é memória, mas a envolve, não é definida aqui como conquista particular, mas como aquisição cultural elementar.
Por se tratar de um atributo inerente ao ser humano (com aspectos diversos, diferentes formas não hierarquizadas e com nuances de diferentes manifestações da consciência histórica no mesmo indivíduo), definir a consciência histórica de um estudante ou de uma turma é tarefa praticamente utópica. Entretanto, os sinais da cultura e da consciência históricas, expressos pelos estudantes enquanto ideias prévias são passíveis de análise e podem viabilizar o planejamento e a implementação do conteúdo selecionado de forma historicamente significativa. Estes sinais demonstram se determinados conceitos de segunda ordem precisam ser trabalhados de forma prioritária, se há aspectos ligados ao conteúdo substantivo que reforçam preconceitos ou autoritarismos históricos e precisam ser minados através de pesquisa e mesmo se alguns desses conceitos já são suficientemente desenvolvidos pela turma.
O objetivo do professor, portanto, não é formar a consciência histórica dos alunos porque eles já chegam com suas consciências formadas. O trabalho do ensino de história é levantar o debate, a negociação e a abertura para a ampliação e complexificação das formas de atribuir sentido ao tempo que os alunos trazem com eles. A percepção da consciência histórica dos estudantes permite que nós professores percebamos a história que o aluno usa: vivida, sensível, enviesada, a qual confere sentido a sua experiência de vida, familiar e social.
Perceber as nuances da consciência histórica dos estudantes possibilita uma aproximação da história vivida com a história a qual nos propomos a ensinar, mais complexa, ampla e com diferentes atribuições de sentido ao tempo.
02. CULTURA HISTÓRICA
A cultura histórica determina as formas pelas quais as narrativas históricas são usadas para orientar ou justificar as ações individuais e coletivas dos sujeitos no presente. O conceito de cultura histórica delineia um conjunto de fenômenos histórico-culturais representativos do modo como uma sociedade ou determinados grupos lidam com a temporalidade ou promovem usos do passado. É o conjunto de saberes históricos que estão assimilados pelas pessoas e, a partir destes, toda a vida, passada e presente, é significada e a perspectiva de futuro é criada.
As respostas e ideias apresentadas pelos estudantes são indícios de como os grupos dos quais eles fazem parte compreendem e significam a sua vivência histórica, sejam estes grupos familiares, comunitários, regionais ou mesmo nacionais. As formas pelas quais os estudantes se identificam, como se relacionam com os grupos identificados como “o outro”, se compreendem determinados processos históricos como positivos ou negativos, entre diversos outros aspectos, são importantes para delinearmos estratégias de trabalho em sala e, ainda mais essencial, para percebermos que o conhecimento histórico não é monopólio do ensino escolar e acadêmico. Ele é resultado de todos os conhecimentos e opiniões que circulam em suas famílias, na igreja ou outras instituições que frequentam e nos meios de comunicação de massa aos quais tem acesso.
Para significar o mundo e sua própria existência o ser humano se vale de sua historicidade, que é a própria condição da existência humana, é algo que nos constitui enquanto espécie. Em outras palavras, pensar historicamente é um fenômeno, antes de qualquer coisa, cotidiano e inerente à condição humana. Ao atribuirmos significados, escolhermos determinadas roupas ou cortes de cabelo, ingerirmos determinados alimentos cotidianamente, utilizarmos uma língua para nos comunicar ou mesmo praticar determinada religião, estamos imersos em camadas históricas que condicionam nossas práticas e nossas estruturas mentais. A cultura histórica portanto, pode ser relacionada aos elementos históricos e historiográficos que utilizamos para atribuir estes significados à nossa existência.
03. LITERACIA HISTÓRICA
Ensinar história é muito mais do que ensinar a ser patriota, ser religioso, ser moralmente correto a partir do ensino de fatos, personagens e datas modelo, é ensinar a pensar historicamente. É através do ensino de ferramentas históricas que os estudantes poderão usar evidências históricas para significar sua vida.
Aprender sobre o processo constituinte no Brasil do final da década de 1980, por exemplo, deve ser importante na medida em que os estudantes, mais do que nomes de deputados e senadores constituintes representantes de sua cidade ou região, mais do que datas e resultados de eleições e de votações no congresso, mais do que trechos da própria Constituição memorizados, compreendam que a população da época fez parte de um processo constitucional e se organizou para defender interesses de classe e de categorias. Aprender sobre este tema significa que os estudantes compreendam que esta mesma população não participou dos processos constitucionais anteriores, o povo não tinham sido ouvido; aprender sobre este tema deve ser importante para que eles compreendam também que processos de transição e de crise política são marcados por permanências, reminiscências, rupturas.
Em outras palavras, o ensino deste conteúdo substantivo deve ser pautado pela preocupação em ensinar os conceitos de segunda ordem que envolvem o processo em questão. É a partir desta forma de ensino de história que a literacia histórica se desenvolve. Este conceito está ligado à ideia de letramento linguístico no qual estão envolvidas as competências de leitura e compreensão linguísticas. Peter Lee aponta para alguns princípios que podem conceituar a literacia histórica:
Uma primeira exigência da literacia histórica é que os alunos entendam algo do que seja história, como um “compromisso de indagação” com suas próprias marcas de identificação, algumas ideias características organizadas e um vocabulário de expressões ao qual tenha sido dado significado especializado: “passado”, “acontecimento”, “situação”, “evento”, “causa”, “mudança” e assim por diante.
Isso sugere que os alunos devem entender, por exemplo:
- como o conhecimento histórico é possível, o que requer um conceito de evidência;
- que as explicações históricas podem ser contingentes ou condicionais e que a explicação de ações requer a reconstrução das crenças do agente sobre a situação, valores e intenções relevantes;
- que as considerações históricas não são cópias do passado, mas todavia podem ser avaliadas como respostas para questões em termos (ao menos) do âmbito do documento que elas explicam, seus poderes explicativos e sua congruência com outros conhecimentos.
O estudante letrado historicamente é capaz de compreender que a narrativa histórica é uma construção, com características e conceitos próprios, baseada em evidências, as quais são traços de intenções dos narradores e que as explicações do passado partem de questões elaboradas por pessoas do presente a partir de problemas do presente. O estudante letrado historicamente pode compreender estes conceitos, ou seja, os conceitos de segunda ordem.