SEQUÊNCIA 02
CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E O ABISMO DE UMA SOCIEDADE SEM GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DE CIDADANIA
É comum percebermos que gerações posteriores às transições não compreendem claramente, de forma natural, a importância das conquistas e das rupturas com relação ao período anterior, violento e de exceção.
Nossa sociedade é um exemplo clássico deste problema. Vivemos em um período que está repleto de discursos negacionistas e revisionistas que, além de negar a ciência como um todo, de forma específica nega a violência da ditadura e não valoriza os princípios democráticos de liberdade. Como consequência, temos hoje uma série de manifestações em defesa de intervenções militares, pedindo o fechamento de uma ou outra instituição democrática, homenagens de autoridades a torturadores, enfim, uma sociedade que flerta com o autoritarismo e pede a morte da democracia e do povo.
Além disso, pesa em nosso contexto específico, o fato de trabalharmos em uma cidade pequena e de interior. Os estudantes dificilmente se identificarão com grandes manifestações na Praça da Sé, com grandes confrontos entre PM's e estudantes no Rio de Janeiro ou com violência policial nos porões do DOPS de São Paulo ou de Brasília.
Dessa forma, a análise dos trechos dos Inquéritos Policiais Militares (IPM) destacados, envolvendo moradores de nossa cidade, Arapongas, terá o potencial de levar nossos estudantes a perceber como os tentáculos violentos do regime militar alcançavam a todos e a ausência de garantias fundamentais tornava todos suspeitos e possíveis vítimas do regime.
No trecho do IPM a seguir, podemos perceber as contradições explícitas que indicam o possível assassinato de Henrique Cintra Ferreira de Ornellas, encoberto como suicídio. No laudo cadavérico, o legista afirma que "Não havendo sinais de tortura ou crueldade e sinais de defesa somos da opinião que são fortes os indícios de suicídio". Porém, outro médico, em seu testemunho, afirma que "O preso mostrava-se, apenas, um pouco ansioso por seu estado de saúde, ficando tranquilo pela afirmação de que seu estado de saúde era normal e que passaria a vê-lo diariamente". Pouco à frente, o mesmo médico afirmou: "causou-me surpresa o desfecho final, visto que o referido preso estava bastante preocupado com a sua saúde, tendo medo de morrer abruptamente, sem assistência médica e ao final da última consulta o mesmo estava aceitando bem sua situação de preso e de boas condições de saúde".
Já nos trechos em destaque abaixo, Abelardo de Araújo Moreira aparece sendo interrogado e a fundamentação de sua prisão é o boato de ter recebido um membro do Partido Comunista. As perguntas do inquiridor demonstram que o simples fato da suspeita de se identificar com este partido político era motivo para ser exilado por mais de um ano e, no retorno, ser preso em uma prisão militar.
Os dois casos demonstram, e será possível aos alunos perceber isto analisando os documentos, que mesmo em nossa pequena cidade, mesmo membros de classe media-alta na sociedade, foram vítimas da ditadura, pois sem as garantias fundamentais, todos são vítimas em potencial.
Porém, este aspecto, por mais que seja visceral, expondo a violência extrema do Terrorismo de Estado, aponta para a necessidade das garantias fundamentais de vida e liberdade. Nosso objetivo é que os estudantes percebam, com a carga emocional destes casos, a importância da cidadania, mas que, em seguida, possam compreender o conceito de cidadania como complexo e completo. Que a cidadania só é plenamente exercida quando garantidos todos os direitos de cidadania previstos na constituição, o que pode ser analisado a partir do estudo da canção "Comida", da da banda Titãs, lançada em 1987, que grita pela cidadania por completo:
A gente não quer só comida/ A gente quer comida/ Diversão e arte/ A gente não quer só comida/ A gente quer saída/ Para qualquer parte.../ A gente não quer só comida/ A gente quer bebida/ Diversão, balé/ A gente não quer só comida/ A gente quer a vida/ Como a vida quer [...] A gente não quer só comer/ A gente quer comer/ E quer fazer amor/ A gente não quer só comer/ A gente quer prazer/ Prá aliviar a dor.../ A gente não quer só dinheiro/ A gente quer dinheiro e felicidade/ A gente não quer só dinheiro/ A gente quer inteiro e não pela metade
Ao gritar que não basta comida, a banda expressa o sentimento generalizado do momento constituinte de que era necessário viver e não apenas sobreviver. Todos os direitos que estavam em jogo foram postos na constituição e cabe a nós, inclusive aos estudantes, a luta e a defesa por sua garantia.
Assim, como mencionamos várias vezes o texto constitucional, a análise dos incisos dos artigos quinto, sexto e sétimo são interessantes no sentido de ver como as garantias individuais se desdobram em direitos específicos e como uma série destes direitos são reiteradamente negados a parcelas cada vez maiores da população. Ao apresentar os dois artigos completos aos estudantes, o professor poderá orientá-los a buscar em sua longa lista de incisos, direitos que eles consideram "naturalmente" garantidos e direitos que eles percebem como negligenciados. É possível também que o professor faça essa pré-seleção para que os estudantes analisem a partir desta indicação, construindo uma narrativa de concordância ou discordância